domingo, 24 de janeiro de 2016

Morten Lauridsen - Dirait-On



Contexto:

 Devo começar o post falando que estou muito feliz por ter conseguido um vídeo desse dia. Esse provavelmente vai ser o "contexto" mais improvável até o momento.

 Tudo começou quando eu e mais 3 amigos nos inscrevemos para a classe de Regência Orquestral no Festival de Londrina em julho de 2015, para ter aulas com Joseph Caballé-Domenech (Um professor espetacular, diga-se de passagem) e com o maestro e pianista Ricardo Castro.
 Alunos cantantes que somos, após as aulas íamos cantar no coro do festival, e é aí onde começam as coincidências.
 A primeira delas é que naquele ano, quem deveria ensaiar o coro era o maestro argentino Nestor Zadoff mas, por algum motivo que não me lembro, ele não pode ir e chamaram o excelente Angelo Fernandes (que dá aulas na Unicamp). Até aí nada de mais... se eu e a minha amiga (Thais Akemi) não tivéssemos feito um curso de técnica vocal para coro com ele meses atrás em Ribeirão Preto (que, por sua vez foi o festival mais "de última hora" que já fizemos).
 No primeiro ensaio ele decidiu fazer um ensaio de naipe e, por outra coincidência, como não tinha alunos de regência coral cantando de tenor, fui convidado a ensaiar o naipe. Após a aula, ele convidou a mim e a Thais para assistir as aulas dele de Regência Coral, fazendo com que tivéssemos que alternar os dias de matar aula de um curso para assistir o de outro e fazer os dois cursos simultaneamente e, assim, conseguir cantar e reger o coro no final do festival.
 Após voltar para casa, quando fui descarregar os vídeos da câmera, notei que o meu vídeo regendo essa música tinha sido deletado misteriosamente e fiquei super chateado por achar que tinha perdido o registro desse momento. Meses mais tarde (Janeiro de 2016), enquanto participava do Festival Musica nas Montanhas em Poços de Caldas, após decidir de última hora ir assistir a um concerto noturno que eu não planejava ir... e decidir sair de onde eu tava em um canto do salão para ir a outro sem o menor motivo aparente, uma das coralistas (Gigi Gomide) que cantou em Londrina conseguiu me encontrar e foi falar comigo e, após eu comentar que tinha perdido o vídeo, ela comentou que uma amiga (Luciene Angelucci) tinha postado o concerto inteiro no facebook... fazendo com que eu recuperasse o vídeo. Parando para pensar em tudo que poderia ter impedido esse post de existir:

- Não decidir de última hora ir para Ribeirão
- Não fazer o curso de técnica vocal para coro
- Não ir para Londrina
- Não acontecer do Nestor não ter podido ir e chamarem o Angelo
- Não ir cantar no coro
- Não faltar alunos tenores para ensaiar o naipe
- Não fazer os dois cursos simultaneamente
- Não ter ido para Poços de Caldas
- Não ter ido naquele concerto específico
- Não ter saído daquele ponto específico do salão onde a Gigi não teria me visto
- Não ter comentado sobre o vídeo
- Não encontrar a Luciene no facebook

 Passei a acreditar um pouco mais em destino hahahaha


 Descrição/análise:

 Essa peça é a última música de um ciclo de 5 canções do compositor americano Morten Lauridsen chamada "Les Chansons des Roses" escrita sobre os poemas do poeta alemão Rainer Maria Rilke, que aborda o sentimento de "dar amor e não recebê-lo de volta".

Dirait-on

Abandon entouré d'abandon,
tendresse touchant aux tendresses…
C'est ton intérieur qui sans cesse
se caresse, dirait-on; 

se caresse en soi-même,
par son propre reflet éclairé.
Ainsi tu inventes le thème
du Narcisse exaucé.


Seria dito
Abandono cercado de abandono,
Ternura é comovente ternura...
É o seu eu-interior que incessantemente se carece , seria dito;

 Cariciando a si mesmo, através da sua clara reflexão.

 Assim tu inventas o tema de um Narciso satisfeito.



(Não sou a melhor pessoa para traduzir poemas... mas creio que seja algo do tipo)



 Mesmo sendo a última música do ciclo, Dirait-On foi a primeira delas a ser composta e, após o enorme sucesso com a composição, o compositor foi encorajado a escolher 4
outros poemas para musicar.




 A forma da música, ao meu ver, é definida pela alternância dos dois temas principais da música. O tema sobre os versos do poema (Que chamarei de A, que aparece logo no compasso 4e vai até o c.12) e o tema sobre a palavra "Dirait-On" (Que chamarei de B, dos compassos 13 ao 20).

 Na primeira seção da música (que eu considero do compasso 1 ao 48) os temas A e B seguem uma estrutura muito similar ao das canções populares, que alternam entre "verso e refrão". Eu entendo essa primeira seção como um momento de "exposição" dos temas dentro da forma geral da música, pois ambos os temas são apresentados em uníssono (alternando vozes femininas e masculinas, para variar o timbre durante a apresentação do poema e não deixar a música cansativa através das repetições) O último "refrão" é apresentado com um tutti para ganho de densidade e é defasado, creio eu, para manter a movimentação da música até o final da sessão. Além de impedir a monotonia que a música teria caso o uníssono fosse mantido até o final da repetição de B.




Na segunda seção (do compasso 48 ao final da música) acontecem 3 eventos. Um desenvolvimento dos temas A e B aparecendo simultaneamente, uma reexposição no tema B e uma coda. O que deixa a forma geral da música muito similar a uma forma sonata.
 No início do desenvolvimento (c.52-c.67), o tema A aparece nas vozes de soprano e baixo defasados por um compasso e, na repetição, entre as vozes de contralto e baixo. Enquanto isso, na primeira vez, a voz de contralto faz um pedal sobre a nota da tonalidade da música (Db Maior) e o tenor faz o tema B ao mesmo tempo encurtado e ampliado (a duração das notas é ampliadas, fazendo com que cada nota fique mais longa, porém a frase foi encurtada)

 Na segunda aparição de A (aquela entre contralto e baixo) as vozes de tenor e soprano fazem intervenções com trechos literais de B. Encerrando o "desenvolvimento" da peça.

Logo em seguida temos uma reexposição sobre o tema B (c. 68-c.84) na voz das sopranos com o resto do coro atuando como "acompanhamento", usando assim, no coro,  uma textura que ainda não tinha sido usada - a de melodia acompanhada. Logo em seguida, essa melodia retorna à defasagem entre vozes femininas e masculinas apresentada no final da exposição, se desfaz em 4 vozes separadas para retornar à textura de melodia acompanhada no c. 81. Encerrando a reexposição no c.84.

Em seguida, entendo o trecho que se inicia no c.88 até o final como uma coda, que utiliza um motivo do tema B também como melodia acompanhada.

Dificuldades/ Soluções:

* Como essa música repete muito, ela facilmente fica monótona se não tomarmos cuidado com o andamento dela. Para isso, busquei correr um pouco no andamento durante as aparições do tema B para garantir maior
movimentação da peça e tentar impedir que ela ficasse "terminando" toda hora.

* Não tive que me preocupar com a técnica vocal do coro pois o Angelo, sendo o melhor preparador vocal que já conheci até hoje, fez tudo o que foi possível com o coro durante as duas semanas de festival e, inclusive, preencheu buracos nos 4 naipes cantando. Ainda assim, pela falta de tenores com boa leitura, a música sentiu um pouco de falta do contraponto deles durante o desenvolvimento... mas paciência, não tinha muito o que fazer.

* Normalmente nestes festivais os alunos tem pouco tempo para trabalhar a música, pois pegam o coro ou a orquestra nos últimos dias antes da apresentação. Muita gente vê isso como um problema, mas eu gosto de usar isso como uma forma de ver o quanto meus ensaios podem render. Para conseguir mais resultados, costumo dividir o número de ensaios por "assuntos" e dedico um dia para cada um. Nessa música tive basicamente dois ensaios e uma passagem geral. Então dividi assim:

1º Dia: Apoios de frase e Tempo - Normalmente a primeira que eu gosto de ensaiar são os contrastes de dinâmica, para que os fortes fiquem de fato fortes e os pianos, de fato, pianos. Porém, a escrita dessa música facilita muito esse contraste devido ao uso de uníssonos alternados com momentos polifônicos. Então dediquei o primeiro ensaio ao tratamento dos apoios do texto... para que a melodia não ficasse tão "rítmica" e mais fluida. Assim como aproveitei para mostrar para o coro os momentos onde eu correria mais, e onde eu seguraria mais o tempo.

2º Dia: Timbre - Aproveitei a presença do Angelo para me ajudar a trabalhar o timbre do coro, pois ele sabe exatamente como chegar em qualquer sonoridade que se procure. Pedi para que ele me ajudasse a chegar num timbre um pouco mais escuro e cheio do que o coro estava naquele momento (principalmente sopranos, que tinha um som mais brilhante do que o normal... e tenores que estava muito metálico) Obviamente, por se tratar de um coro amador, não foi possível deixar um timbre maravilhoso de um coro de cantores, mas achei o resultado final excelente em comparação com o primeiro ensaio. Obviamente que o mérito disso é todo dele.

*A coda da música eu optei por fazer um gesto subdividido para ajudar no andamento lento (de fato, ajudou muito), porém não deixei as duas últimas colcheias tão claras (além de ter um monte de soprano que não estava olhando no dia) e o final ficou um pouco desencontrado.

É isso aí, longa história, longa análise. Espero muito poder fazer esse ciclo inteiro com um coro profissional em algum momento da minha vida.
Abraços improváveis
 Augusto Girotto


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