terça-feira, 14 de março de 2017

Relatos - Guitarrista substituto em espetáculo musical autoral (Los Traidores)

Contexto:

 Domingo, dia 5 de fevereiro de 2017, uma nova mensagem de whatsapp aparece no celular:

 "Oi Girotto, tudo bom? quer tocar no musical que estou dirigindo?".

 E foi assim que fui parar no musical "Los Traidores", apresentado na SP escola de teatro durante todo o mês de fevereiro. Aqui ficam minhas impressões sobre a experiência.


Relatos:

 Sobre o convite

Assim como a vez em que me chamaram pra ficar de sub no musical "In the Heights", este convite foi fruto de uma conversa corriqueira. Tanto desta vez quanto da outra, eu tinha comentado com amigos que trabalham (ou trabalhariam em um futuro próximo) que eu tinha vontade de tocar em teatros musicais algum dia, sem pretensão alguma. Por mais que pareça algo bobo, isso conta pontos a favor na hora que sua função se faz necessária: você já manifestou interesse.

 Fui chamado em uma situação de urgência, o guitarrista (que também era o compositor do musical) teve sérios problemas de saúde e não poderia tocar na temporada (que estreava no fim de semana seguinte) e só teriam mais 3 ensaios antes do geral. Portanto, sabia que seria uma correria enorme (ainda mais sendo meu ano de tcc) mas aceitei o convite pela experiência.

Sobre o trabalho

Para este trabalho, o diretor queria que alguns músicos (no caso 2, eu e um percussionista) tocassem por cima dos playbacks já gravados para dar um "ar de ao vivo" ao espetáculo, algumas vezes dobrando o playback, algumas vezes complementando. Nesta situação, o trabalho facilita muito, pois a música "ainda acontece" mesmo que tudo dê errado e você não tenha como tocar. Tem muito menos pressão envolvida do que musicais canônicos (como o "In the Heights"), onde suas linhas estão todas escritas e, muitas vezes, dependem 100% de você para que aconteçam.

Sobre a preparação.

Por ser um musical autoral, obviamente você não encontra muitas coisas na internet para referências. Sejam cifras/ partituras/ gravações. Neste trabalho tive acesso a alguns playbacks já no dia seguinte ao convite, os mesmos que seriam usados nas apresentações, alguns tinham vozes guias gravadas, outros eram apenas os playbacks. Então a primeira coisa que fiz foi fazer uma cifragem da forma da peça (vendo quantos compassos tinham, qual o acorde em cada compasso, quantas sessões as músicas tinham, riffs principais e etc) e anotá-las em um caderno para poder ter uma "proto partitura" pra me basear. Neste processo de tirar as músicas de ouvido, já fui decorando a forma de cada uma delas pelo simples fato de ouvir várias vezes e escrever.

 No primeiro ensaio musical, não levei o instrumento, pois queria ver em que parte da peça as músicas aconteciam (até porque eu nem sabia o enredo ainda) e conhecer um pouco dos personagens, para saber como procurar "pintá-los" musicalmente. Aproveitei também para anotar as deixas para as músicas começarem e onde as vozes entravam dentro da forma. Onde teria espaços para solar e coisas do tipo. Depois desse ensaio fui para casa e comecei a montar alguns timbres de guitarra para poupar tempo nos ensaios gerais.

No ensaio seguinte levei a guitarra para tocar desplugada, para já ir experimentando algumas idéias sobre o playback sem correr o risco de atrapalhar o ensaio cênico. No ultimo ensaio e no ensaio geral eu já levei o kit completo para experimentar o som da sala e fazer os últimos ajustes que precisavam para a estréia.

Sobre o ambiente teatral.

 Se tem uma coisa para se dizer sobre o teatro é: as coisas mudam. Sabe aquela música que ia ser assim? Então, agora vai ser assim. Sabe aquela cena que seria assim? Agora não vai ser mais. E etc.
 Ainda bem que as coisas mudam, pois quando precisam mudar, é sempre para melhor. Mas tais mudanças necessitam que você esteja sempre atento aos ensaios (mesmo quando não estejam passando nada que você toque) para não dar bobeira em cena.

Outra coisa importante é que você tem que estar pronto para imprevistos. Muita coisa pode dar errado no teatro. Seja a luz da sua partitura ficar mais fraca ou apagar no meio do espetáculo, seja as caixas começarem a dar algum tipo de interferência, seja retorno falhar, seja ator entrar em momentos diferentes, seja a máquina de fumaça acumular muita fumaça onde você esteja. Então quanto mais firme você estiver no que tem que fazer, mais você consegue lidar com esses imprevistos que vão acontecer. Toda vez que você começar um espetáculo sem passar o som antes, você terá problemas com o som. Mesmo que você deixe exatamente nas mesmas configurações do dia anterior. Não me pergunte o porquê, só sei que você irá ter problemas com o som.

Uma coisa muito legal que esse musical autoral teve de diferente dos concertos puramente musicais é que o espetáculo foi evoluindo ao longo da temporada. Considerando a estréia e a última apresentação, creio que não teve nenhuma música que eu tenha terminado tocando do mesmo jeito que comecei. Tivemos muito mais espaço para experimentações, vendo como o público reagia a algumas interferências da banda e etc.

Sobre a apresentação.

Acho que a parte mais divertida deste processo foi a construção da banda como um personagem musical, ora como intervenções sonoras, ora como "personagens" no jogo dos atores. Nos maquiamos de "caveira peruana", fomos "culpados" pela distração de um personagem, improvisamos junto a uma cena entre outras coisas. Estes jogos fizeram com que os espetáculos passassem todos muito rápido, pois não dava a sensação de "fazer a mesma coisa 3 vezes por semana por 1 mês inteiro", estávamos sempre experimentando coisas novas.

Sobre a equipe.

 A melhor parte dessa experiência foi sem dúvida a equipe. Tanto pela oportunidade de conhecer um super percussionista (Dariu Ricco) e um sonoplasta que resolveu todos os B.Os que apareceram no caminho (Alex Akxenakis), mas também pela chance de conhecer os atores e produtores. Foi um ambiente muito amigável, de respeito e confiança mútua. Antes de cada apresentação cumpríamos um "ritual" em roda para aumentar a energia de todo mundo e trazer a alegria de fazer o que gosta (o que, sinceramente, fazia tempo que eu não sentia)

Sobre a construção das linhas

 As maiores dificuldades que apareceram neste trabalho foi de "como complementar esse playback sem ficar muito carregado?", "como diabos eu vou improvisar em cima de um tango/salsa/cumbia?"

 A primeira questão foi resolvida com as perguntas "o que esse playback ainda não tem?" e "esse playback precisa disso?"

 Por exemplo, em uma das músicas o playback já mostrava uma harmonia, uma linha de baixo e uma melodia. Portanto, musicalmente, a única estrutura que não se apresentava era um contraponto, decidi então criar uma linha melódica para ficar "em segundo plano" em relação à melodia. aproveitei que era uma música feita para soar "xananã" e fiz a o contraponto mostrando a subdivisão binária dos tempos, em cima das tríades da harmonia. como a forma se repetia 3 vezes e era um crescendo, optei por não tocar na primeira vez, na segunda vez eu toquei essa linha como "ghost notes" e na terceira em legatto. Criando variação sem aparecer demais.

Em outra música, tinhamos um riff de introdução, um riff no meio, e um trecho enorme de harmonia com percussão. Decidi criar um "pica-pau" (uma espécie de ostinato ritmico-motívico comum nas funky musics e alguns ritmos brasileros). Como ficaria estranho esse elemento entrando ao vivo entre os riffs do playback, optei por dobrar os riffs no playback para o público não sentir diferença de timbres entre as sessões.

Além de criar linhas sobre os playbacks, tivemos que criar algumas "paisagens sonoras" para cenas, o que foi relativamente fácil. Para a figura do ditador eu criei um motivozinho sobre uma tríade diminuta na tonalidade que ela aparecia quando o personagem cantava, e na hora que precisei criar a trilha do seu retorno fiquei transpondo esse motivo em terças menores (para inverter o acorde diminuto e criar variação de altura). Na cena exatamente antes dessa eu usei um intervalo de trítono (o mais característico da tríade diminuta) e fiquei variando cromaticamente, para ter um material em comum entre as cenas não soarem nem iguais demais (pra não entediar) e nem diferentes demais (para não dar a sensação de desconexão)

Basicamente é isso aí, creio que tenha falado de tudo. Se precisarem de mais alguma coisa é só comentar que eu complemento o post.
Abraços e Ôleeeeeee
Augusto Girotto

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